NETO, Júlia da Atouguia de França
Funchal, 1825 - Funchal, 04/04/1903
Pianista, cantora intérprete em soprano e contralto. Júlia da Atouguia de França Neto organizou saraus de beneficência, nos quais os músicos e artistas da época participaram ativamente.

A primeira referência à atividade de Júlia de França Neto na música surge aos 11 anos de idade, em 1836. Na época tinha aulas de canto, em Roma, com a professora Santis. Posteriormente ingressou o Conservatório de Genébra, onde a sua família se fixou em 1840. No Conservatório de Genébra frequentou as classes de piano, canto e harmonia, com mademoiselle Raffard, Francisco Bonoldi e Bloc, diretor do Conservatório. Durante o seu percurso académico foi premiada em 1846 nas disciplinas de Piano e Canto.
Três meses depois de concluir a sua formação superior Júlia de França Neto estreou-se num concerto organizado por Bonoldi, com uma ária de Lucia di Lamermoor.
Depois de Genébra, Júlia de França Neto fixou residência em Paris, onde prosseguiu a sua formação com Geraldy; Caçares, com quem aprendeu a cultura musical espanhola e guitarra; e Fiocchi, músico formado no método do castrato de Girolamo Crescentini.
Os seus conhecimentos como intérprete certificam-se pela sua apresentação em diversos salões da sociedade parisiense, referida nos títulos nobiliárquicos citados por Platon de Waxel, na biografia de Júlia de França Neto; e nas recitas apresentada na Sociedade Filarmónica de Tarbes, em 1853 e em St. Germain en Laye, em 1854.
Na Enciclopédia Luso-Brasileira refere-se que a família França Neto permaneceu em Lisboa em data anterior a 1854, residindo no Palácio do Marquês de Sá da Bandeira, em São Sebastião da Pedreira. A mesma fonte destaca a apresentação frequente de Júlia de França Neto em iniciativas musicais do conde de Farrobo, saraus em que conheceu D. Fernando II.
Júlia de França Neto regressou à Madeira em 1854, uma época em que presenciou a miséria vivida na ilha devido à crise agrícola e comercial, agravada pela crise vinícola da mangra (oídio).
Esta situação alcançou maiores proporções desde o aluvião de 1853, que causou grande desvastação em todo território. A condição precária em que se encontravam os madeirenses foi propícia às epidemias de cólera em 1856 e febre-amarela em 1858.
Neste contexto social Júlia de França Neto encetou a realização de dez saraus de beneficência, para suprir as necessidades dos pobres e desfavorecidos, entre 1854 e 1861. A cantora também tomou parte nos saraus organizados por Maria Paula Klingelhöefer Rêgo a partir de 1865, criados com a mesma finalidade; e no concerto do virtuoso violinista Agostinho Robbio, realizado no mesmo ano.
O primeiro sarau de beneficência em Júlia de França Neto terá participado foi realizado a 28 de Dezembro de 1854 na Escola Lancasteriana. A intérprete cantou quatro peças de Rossini, acompanhadas ao piano por Duarte Joaquim dos Santos e, na ária final, por um coro regido por João Fradesso Bello. Neste evento apresentaram-se também as pianistas Maria Paula Klingelhöfer Rego, Carlota Cabral e Cândido Drumond de Vasconcellos, músico virtuoso na execução de machete. O relato do concerto no periódico O Clamor Público editado a 2 de Janeiro de 1855 sublinha o talento, a educação musical e interpretativa, a perfeição e raridade da voz de Júlia de França Neto: "a particularidade de cantar como soprano e contralto".
A classificação do tipo vocal de Júlia de França Neto remete para algumas incoerências. No obituário publicado no Diário de Notícias da Madeira atribui-se-lhe o tipo contralto. No entanto, as referências de Platon de Waxel a números musicais com a interpretação do Miserere da ópera O Trovador, a ária do primeiro ato de La Traviata Sempre Libera, de Giuseppe Verdi e Ave Maria de Cherubini são destinadas ao tipo soprano. Uma possível explicação para esta abilidade vocal advém das práticas de canto novecentistas publicadas na obra O Canto Italiano de Alberto Pacheco.
A menção nos periódicos L’Industriel e no jornal O Clamor Público à utilização de duas vozes por Júlia de França Neto deve ser compreendida como o uso dos extremos de dois registos: a voz de cabeça e a voz de peito. Uma prática comum no século XIX aliada à alternância entre os timbres claro e escuro, que possibilitava ao cantor uma interpretação com maior tessitura vocal. Assim, as duas vozes referidas nos periódicos citados enquadravam-se no registo escuro, com recurso à voz de peito (característico do tipo contralto, estabelecido no registo grave e médio); e no o registo claro, em voz de cabeça (caraterístico do tipo soprano e estabelecido no registo médio e agudo).
Na atualidade Júlia de França Neto seria apelidada como mezzosoprano.
A 2 de Fevereiro de 1855 foi realizado outro sarau de beneficência no Salão da Escola Central. O jornal A Ordem na edição de 20 de Janeiro de 1855 sublinha, de forma particular, o convite endereçado a Júlia de França Neto "para estas atitudes de resguardo aos carenciados". A notícia apresenta ainda a descrição do repertório com menção a obras dos grandes mestres, um bolero interpretado à guitarra por Júlia de França Neto, a participação de Maria Paula K. Rego e de Duarte Joaquim dos Santos, como músico acompanhador.
Júlia de França Neto continuou a trabalhar em prol dos mais desfavorecidos com a organização de outro evento na Sala Grande do Palácio de São Lourenço a 2 de Fevereiro de 1858, para auxiliar as vítimas da febre-amarela em Lisboa.
Neste concerto a cantora interpretou árias de Donizetti, números vocais da ópera O Trovador, da ópera La Traviata Sempre Libera, o dueto do Barbeiro de Sevilha com Cândido Drumond Vasconcellos e boleros acompanhada à guitarra.
Em 1864 Júlia de França Neto fixou residência em Lisboa e participou com em diversas soirées, nomeadamente os eventos organizadas pelo marquês de Fronteira, nos quais conviveu com os monarcas D. Fernando e D. Luís, grandes apreciadores de musica.
De acordo com o obituário publicado em homenagem a Júlia de França Neto e O Elucidário Madeirense, o seu regresso à Madeira ocorreu cerca de 1870.
Nesta época a intérprete participou na comédia francesa La Nièce, um espetáculo benemérito em favor do Asilo de Mendicidade e Órfãos do Funchal, realizado a 18 de Maio de 1870 no Teatro Esperança.
Júlia de França Neto contribuiu para o desenvolvimento da prática musical na Madeira, durante a segunda metade do século XIX, com interpretações de grande qualidade e um repertório que, possivelmente, seria desconhecido na sociedade da época.
A cantora também se destacou pela instituição de um modelo benemérito associado às mulheres, que vinculou a presença feminina nos grandes salões funchalenses, quer na organização de eventos ou na interpretação peças teatrais e musicais.
Pinto, Rui Magno (2008). "Júlia de França Neto”. In 50 Histórias de Músicos na Madeira. Funchal: Associação de Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística.
Ventura, Ana (2011). “NETO, Júlia da Atouguia de França”. Dicionário Online de Músicos na Madeira. Funchal: Divisão de Investigação e Documentação, Gabinete Coordenador de Educação Artística, atualizado em 20/09/2011.
Pinto, Rui Magno (2008). "Júlia de França Neto”. In 50 Histórias de Músicos na Madeira. Funchal: Associação de Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística, pp. 9-12